Próprias Palavras

A liberdade está em se ser dono da própria vida. (Platão)

14.9.06

A Elite da Tropa


A Elite da Tropa

É engraçado – engraçado e triste ao mesmo tempo – que até a linguagem dos bandidos e dos policiais corruptos vai ficando cada vez mais parecida.


- Querem levar o baseado pra relaxar?

Foi com essa frase que o policial se despediu do nosso carro. Ele guardou os 175 reais na carteira, bateu a porta do carro e antes de ir ao encontro de seu colega na viatura encostada a poucos metros, nos deu a última dica:

- Nunca saia com o carro tão cheio. Nós sempre damos batidas em carros com muitos jovens.

Pois é, naquela noite comum de primavera no Rio de Janeiro nós quatro cumpríamos o ritual de milhões de jovens de classe média: bebida + baseado + amigos + policia.

Depois de encher a cara em um botequim da lapa entramos naquela lata velha para despachar os amigos que moravam mais longe. No caminho acendemos um baseado no aterro do Flamengo, ali nenhum policial iria aparecer do nada. Na volta eu e Rogério queríamos queimar mais um antes de ir pra casa, mas vimos que a seda havia acabado. Paramos em uma banca de jornal, desci, e na volta, quando mijava num poste, um rapazola que não aparentava ter mais de 18 anos manjou minha rola. Ri, olhei pra trás, acenei pro Rogério e saí dando uma corridinha até o carro que se encontrava do outro lado da rua. Nos entreolhamos e decidimos oferecer uma carona ao rapaz,que àquela altura estava parado em um ponto de ônibus. Parecia inofensivo, tinha cara de bonzinho e ainda por cima era um gatinho.

Fomos direto pro Arpoador. Preparamos um baseado e depois ainda fumamos um que o garoto trazia no bolso. Logo de cara me preocupei em saber a sua idade.

- 21 – respondeu o menino.

- Menos mal – suspirei.

Rogério estava inquieto, com medo de algum policial nos pegar no flagrante. Mas que nada, o lugar só tinha pescadores, mendigos ou homens fazendo pegação. Pouco tempo depois um catador de lata se aproximou e pediu um trago. Não exitei e estendi o baseado. Ele balbuciou algumas palavras incompreensíveis, só dando pra entender quando ele falou que o lugar era rodeado de policias que vira e mexe davam batida e arrochavam os jovens que iam pra pedra fumar.

Quando percebemos que o papo pesou tratamos de sair de fininho. Não sem antes “dar um dois” e guardar a pedrinha que sobrou no bolso direito da calça enrolado em um daqueles sacos de guardar comida congelada.

Menos de cinco minutos depois de deixar o Arpoador rumo a qualquer outro lugar onde pudéssemos terminar a noite, uma viatura da polícia nos mandou encostar.

Eram dois policiais. Um branco, com os olhos claros, gordinho e com cara de mau. O outro negro, mais magro e uma cara típica de malando carioca. Este último era o bonzinho da dupla.

Não demorou muito e o “bonzinho” encontrou a pedra malocada no meu bolso. Não tive nem como reagir. Parecia que aquela era a primeira vez que alguém me pegava fazendo algo completamente ilegal. O mauzinho se aproxima e faz aquelas perguntas de praxe: já fumou hoje? Qual sua profissão? Já tem passagem pela polícia? Blá, blá, blá!!! Anota meus dados em um talão e me lembra o quão enrolado estou a partir daquele momento.

Rogério se aproxima e com a lábia de um excelente negociador inicia um diálogo com os policiais.

- Será que tem como aliviar? Nós não usamos todos os dias, já estamos voltando pra casa, foi um erro...

- Mas são vocês, pequenos usuários, que alimentam o tráfico. E nós policiais é que tomamos tiro de bandido lá de cima.

- Nós sabemos, nós sabemos. A situação da polícia é realmente difícil e nós estamos errados mesmo. Eu só queria saber se há a possibilidade de fazermos algo para que essa situação se encerre aqui e não tenhamos que ir à delegacia.

- Você ta sugerindo o quê?

- Não to sugerindo nada.

- Pode falar!

- Eu não quis dizer nada. Só queria saber se dá pra ir embora sem maiores complicações.

A discussão continuou com o dia raiando e o policial tentando dar um tom importante e moralizador para todo aquele circo armado. Ele nos forçava a dizer a palavra suborno, não iniciava os lances, mas dava margem para que ela negociação prosseguisse. Naquela altura do campeonato já sabíamos que o lance era dar a grana para a dupla e torcer para que eles não nos obrigassem a parar num desses bancos 24 horas para sacar nosso dinheiro. Tínhamos mais medo da polícia que do próprio bandido.
Depois de alguns minutos de reunião o policial negro bonachão se aproxima e faz o lance final.

- Então junta os 175 reais e essa história acaba por aqui. Vou entrar no banco de trás do carro e vocês me passam a grana. Tem que ser rápido porque o dia já ta nascendo e daqui a pouco todo mundo ta vendo a gente das janelas.

Atônitos e lúcidos após a alta carga de adrenalina injetada no nosso corpo não víamos a hora de despachar aquele carona inconveniente. Passamos o dinheiro e nos despedimos como se estivéssemos falando com um amigo que deixamos na porta de casa.

Ele abre a mão e pergunta:

- Querem levar o baseado pra relaxar?

No caminho de volta passamos o filme da situação que acabávamos de viver e ligamos os pontos. O negrinho que lá em cima nos pediu um trago e fez ameaças falando em nome de policiais na verdade era comparsa dos policiais que nos apreenderam. Ele havia dado a exata discrição dos policiais que rondava a região e não parava de se mexer um só minuto. Parecia acenar para alguém de longe.
Uma quadrilha formada por policiais e bandidos. Tudo num mesmo saco.

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